Por Luis Fernando Ribeiro e Leandro Abrantes
A história do heavy metal no Brasil muitas vezes se confunde com a trajetória de algumas bandas pioneiras que ousaram fazer à sua própria maneira aquilo que já se fazia lá fora. Sempre munidas das influências culturais bastante características do nosso país, essas bandas conseguiram criar algo surpreendente, desbravando gêneros que já tinham suas fórmulas bastante consolidadas na Europa e nos Estados Unidos, que recebiam perplexos a música criada por esses atrevidos “garotos selvagens”, misturando elementos rústicos, rudimentares e até mesmo tribais que poderiam soar incabíveis ao heavy metal, se não fossem absolutamente naturais para quem carrega em seu próprio sangue essa riqueza cultural única e peculiar, evidenciada em clássicos incontestáveis como “Roots”, “Holy Land” e “Tingaralatingadun”. Foi assim que Sepultura, Angra, Tuatha de Danann e tantos outros rabiscaram e redesenharam o mapa do heavy metal com os traços e cores únicos do Brasil.
Formada em 1994 nas entranhas do estado de Minas Gerais, os bardos mineiros do Tuatha de Danann, como ficaram carinhosamente conhecidos entre seus fãs, providos de ótimas histórias para contar e uma maneira muito própria de transformá-las em canções, buscaram nas raízes da música medieval, celta, irlandesa e brasileira o intercâmbio cultural e os elementos necessários para reinventar o folk metal com um carisma contagiante e uma inventividade transbordante em cada nota única, que muitas vezes obriga o ouvinte a pesquisar qual instrumento está escutando.
Tendo chegado ao apogeu do heavy metal mundial ao tocar no Wacken Open Air, com status de banda vencedora de uma competição global que os levara até o festival, mas tendo também estado próxima da ruína ao assistir sua formação clássica praticamente se dissolver, o Tuatha de Danann viveu nesses seus quase trinta anos de história momentos intensos de infortúnio e glória, transformados em maturidade e consolidados em In Nomine Éireann, em que a banda consegue efetivamente encontrar o equilíbrio entre sua sonoridade clássica, sua mistura única e sua capacidade de seguir se reinventando.
Com a proposta de fazer uma homenagem à música irlandesa, que sempre influenciou diretamente a sonoridade da banda, regravando clássicos que remontam até o século XII, o Tuatha entrou no Braia Studios para lançar o sucessor de The Tribes of Witching Souls, mas teve seus planos completamente alterados pela situação de pandemia e quarentena à qual o mundo todo fora submetido. Impossibilitados de fazer shows e de utilizar-se dos meios tradicionais para sobreviver na música, Bruno Maia, Giovani Gomes e Edgard Brito, remanescentes da formação clássica da banda, viram-se obrigados a buscar novas formas de viver de sua arte e de fazê-la chegar até seus fãs. Através da entrega incondicional dos músicos à banda, de uma intensa campanha de marketing e de um processo de crowdfunding para financiar o lançamento de seu novo álbum, contando com o apoio de sua base fiel de fãs, que pode acompanhar os bastidores da gravação, foi possível trazer In Nomine Éireann à vida, e a espera e empenho de todos os envolvidos, podemos afirmar, foi devidamente recompensada da primeira à última nota do disco.
O roncar da gaita de fole, o tamborilar do bodhran e o lamentar lamurioso do violino anunciam a boa nova e um instrumento após o outro nos conduzem pela mão para dentro desta verdadeira celebração à música, em um convite a deixar para trás todos os nossos medos, esquecer nossos nomes, abrir nossos olhos e ver a magia acontecendo. É assim que somos introduzidos ao álbum, com a belíssima faixa instrumental “Nick Gwerk’s Jigs”, fazendo um pot-pourri entre dois temas tradicionais irlandeses, “Mist Covered Mountain” e “The Banks of Lough Gowna”, com uma composição autoral inédita, “Nick Gwerk” – um irlandês que participou da Inconfidência Mineira ao lado de Tiradentes – e com a intervenção inesperada da já conhecida “We’re Back”. Os arranjos exuberantes e delicados somados ao reconhecimento imediato da canção do disco “Dawn of a new sun”, levam o ouvinte da nostalgia à comoção em questão de instantes e deixam-no flutuante quando quando Bruno Maia entra sibilante com a melodia de seu sempre bem colocado tin whistle. Além dos instrumentos já citados, nesta faixa ainda podemos ouvir o bouzouki e o banjo de Bruno, os arranjos tuathanescos de teclado de Edgard Brito, o baixo soberano de Giovani Gomes e a participação abrilhantadora dos músicos Rafael Delfino no bodhran, Nathan Viana e o irlandês Kane O’rourke nos violinos e Alex Navar na uilleann pipes.
A transição abrupta e pouco episódica para “Molly Maguires”, além de sua sonoridade levemente mais abafada, causam uma pequena quebra no clima mágico que se construía na primeira música, partindo para um ritmo mais contagiante e direto, típico de músicas como “Tir Nan Og” e “The Dance of the Little Ones”. A primeira canção de trabalho do disco, liberada antecipadamente como single, é uma versão do Tuatha para mais um tema irlandês tradicional, que possui um refrão que gruda imediatamente na memória, para ser cantado a plenos pulmões entre brindes, goles generosos de cerveja e danças animadas ao som do reel, conduzido pelo banjo frenético de Bruno Maia, o violino vibrante de Kane O’Rourke e pela bateria galopante e variada de Rafael Delfino. Os efeitos hipnóticos de Edgard e a linha pulsante de baixo de Giovani ligam todas as pontas desta verdadeira pândega sonora. Para esta faixa a banda ainda contou com a participação especialíssima de Keith Fay, do Cruachan, dividindo seus vocais cativantes com Bruno e Giovani. A letra fala sobre imigrantes irlandeses que se rebelaram contra patrões opressores, especialmente nas minas de carvão na Pensilvânia, nos Estados Unidos.
O contraste perfeito entre o clima fantástico da primeira música e a vibração contagiante da segunda se somam em “Guns and Pikes”, segundo single do disco, em um medley entre uma música tradicional e trechos de novas composições da banda. A participação de Folkmooney dividindo os vocais com Bruno Maia cria um contraponto excelente nas vozes, e os riffs somados à cozinha pesadíssima de Giovani Gomes acompanhado pela participação do excelente baterista Marcell Cardoso, da Família Lima, criam a ponte para o poderoso refrão à ser cantado aos brados de “Praise the ones who face oppression, Praise the ones who dare to fight! They gave their life for freedom and shall be hailed both and and night! Be of god or of the devil, if they come, bring guns and pikes, cause the likes of them are fierce and they will fight until they die”.
A instrumental “Moytura” mais uma vez mescla elementos de jigs tradicionais irlandesas, as encantadoras “Humours of Whiskey” e “Leslie’s March”, com novos arranjos para um clássico do Tuatha, “Battle Song”. A releitura com low whistle do lindíssimo arranjo de teclado original da canção do disco “Tingaralatingadum”, caiu como uma luva para as melodias ora lentas e profundas, criadas pela combinação dos sons do bouzouki, bodhran e violinos, ora vívidas e saltitantes da slip jig, criadas pela lindíssimas linha de baixo, banjo, uilleann pipes e do improvável mas adorável som da escaleta – aqueles tecladinhos de sopro – de Edgard. Uma das mais belas e emocionantes canções de todo o disco.
Uma das poucas faixas completamente autorais do disco, “The Calling” é um presente para os fãs de longa data da banda, com uma estrutura e uma estética musical que remete às épicas “Trova di Danú” e “The Wheel”, especialmente na parceria vocal de Bruno Maia com a belíssima voz de Manu Saggioro e no clima soturno acentuado pela densidade requintada das melodias e vozes, que apesar de soarem doces e delicadas, convocam irmãos e irmãs a se unirem, agirem e lutarem, em um tom de uma urgência tensa e incisiva.
“The Wind That Shakes the Barley” é uma versão inspirada em um arranjo realizado pelo grupo americano de música tradicional irlandesa, Solas. Na versão do Tuatha, o tom lamurioso da balada é acrescido de um peso arrebatador das guitarras de Raphael Wagner – que apresenta os primeiros solos do disco – e de Bruno Maia – que também faz belos arranjos de violão -, das linhas precisas e rosnantes do baixo de Giovani Gomes – que poderia ter recebido um dedinho a mais de volume nessa canção -, acompanhado da bateria quebrada e técnica de Marcell Cardoso e pelas várias camadas de diversificados arranjos de Edgard Brito, tornando-se a canção mais pesada e vigorosa de todo o disco. A participação da vocalista Daísa Munhoz, com sua voz aveludada e potente, abrilhanta ainda mais a grandiosidade da composição. Toda essa capacidade inventiva da banda reflete em cada detalhe deste lançamento, valendo aqui destacar também o belíssimo encarte do álbum criado por Rodrigo Barbieri e o trabalho realizado por Paulo Oliveira na arte da capa, que transmite com precisão os sentimentos e o senso artístico profundo do álbum.
A tradicional “Newry Highwayman” teve seu arranjo mantido mais próximo ao original que as demais canções e apesar de seus menos de três minutos, possui um belíssimo storytelling e uma interpretação magistral dividida entre Bruno Maia, que muito provavelmente dividiu os backing vocals absolutamente teatrais com o baixista Giovani, além da voz agradabilíssima de Talita Quintano. A canção acaba e deixa a impressão que poderia continuar tocando durante toda uma noite, como uma bela história sendo contada ao pé da fogueira, que absorve completamente a atenção do ouvinte.
“The Master Reels” é a canção mais longa do disco, combinando trechos e elementos das canções “Glen of Aherlow”, “Julie Delaney”, “Dregs of Birch, da cantora Tanya Elizabeth e “Maia’s”, mais uma composição própria de Bruno Maia. A quantidade e a diversidade de canções incorporadas à essa faixa refletem na quantidade de mudanças de clima apresentados, indo de um trecho mais melancólico e introspectivo, absolutamente emocionante, conduzido pelos instrumentos de sopro e pela belíssima participação do músico tradicionalista irlandes John Doyle no violão e no bouzouki, passando por uma ponte mais animada e festiva, que precede um trecho mais sombrio, conduzido por linhas arrastadas e carregadas de banjo, violino, bouzouki e culmina nas esperançosas e vívidas melodias do trecho final da canção. Além de John Doyle, também participam dessa canção o já citado violinista Kane O’Rourke e Rafael Salobreña no bodhran.
A inevitável drinking song “The Devil Drink Cider”, com sua narrativa grandiosa, é detentora de um clima difícil de se explicar, em um meio termo entre empolgante e soturna, divertida e heróica, causado especialmente pelas nuances vocais contrastantes entre a interpretação de Bruno Maia e do convidado, o músico americano Marc Gunn, com excelentes incursões de vocais guturais e backing vocals, reforçando o clima épico da canção. Além de Marc, participam dessa música o violinista Nathan Viana, com suas intervenções pontuais e certeiras e o excelente baterista Fabrício Altino, que conduz as constantes quebras de ritmo com técnica e feeling nas medidas certas, criando climas marcantes no cavalgar do surdo ou nas conduções com o ride. Os duetos e o solo de guitarra, a cozinha contundente e as bases de teclado concisas trazem o peso infalível do heavy metal, fundamental para a mistura que resulta na fórmula que o Tuatha de Danann criou e não cansa de abrilhantar a cada disco.
O disco encerra com a emocionante “The Dream One Dreamt”, que começa com uma linha de violão que remete aquela que precede o refrão de “Spellboundance”, acompanhada de belíssimos efeitos criados por Edgard no teclado, que desfila todo seu vasto e refinado repertório nesta canção, seguida por uma linha lindíssima e comovente de banjo, instrumento esse que esteve presente mais do que nunca neste disco e que aqui convida cada um dos instrumentos a bailarem sua melodia como se um por um viesse saudar e agradecer sua participação e importância na composição desse disco e da admirável história do Tuatha, numa despedida tão divertida e emocionante quanto “Tingaralatingadun” fora para o disco que carrega seu nome.
Como faixa bônus, ainda somos brindados com a brutalidade sísmica de “King”, que destoa tanto do restante do disco a ponto de não entrar no repertório oficial, com sua mensagem política bastante clara e direcionada em sua letra, criada em parceria com Tadeu Salgado. A música é uma celebração à obra e ao talento dos três músicos obstinados que carregam o peso da história e as expectativas do futuro do Tuatha de Danann sob seus ombros. Bruno Maia desfila como sempre todo seu leque como multi instrumentista habilidoso que é, mas aqui também relembra sua importância como guitarrista e vocalista de heavy metal, criando riffs encorpados, solos poderosos e linhas vocais primorosas. Giovani Gomes com seu baixo trepidante cria fraseados profundos, soltos e deslumbrantes e uma base arrebatadora, fundamental como a fundação de uma grande construção. Edgard Brito como tecladista virtuoso que é, explora as possibilidades de seu instrumento, deixando evidentes suas influências, mas também a sua capacidade criativa, ajudando a moldar a identidade única já personificada na música do Tuatha. Rafael Delfino também se mostra cada vez mais entrosado e uma excelente escolha para seguir acompanhando a banda.
In Nomine Éireann transmite a segurança de uma banda que reencontrou seu caminho, sabendo de onde veio e para onde vai, presenteando e homenageando não somente a música irlandesa, mas principalmente os fãs e a própria obra do Tuatha de Danann, em mais este incrível capítulo na trajetória de uma das mais importantes bandas da história do metal brasileiro. A nós, do lado de cá, resta torcer e esperar por muitos outros capítulos dessa longeva e fantástica história.
O álbum já está à venda no site do Tuatha de Danann e na página da Heavy Metal Rock. Em breve o disco será disponibilizado em todas as plataformas de streaming
Nota Luis Fernando Ribeiro: 9,6
Nota Leandro Abrantes: 9,5