Therion se apresentou em Porto Alegre e encantou os fãs
Logo se vê que há metal nos teatros de Porto Alegre quando, ao chegar, adentra-se uma nuvem de fumaça de cigarros que mais parece um portal para o domínio do onírico, que leva a um lugar de imaginário próprio, e, obviamente, trilha sonora exclusiva.
E para representar a idéia de imaginário próprio, ninguém melhor que Christofer Johnsson e seu luxuoso projeto, o ambicioso Therion – que desde sempre apresenta um line-up rotativo – para subverter de todas as barreiras impostas pela crítica cultural do gênero.
Atualmente, a banda promove The Beloved Antichrist, uma metal-ópera com nada menos que 46 canções. A produtora Mitnel organizou a laboriosa gig – que contou ainda com a abertura do Spleenful e com a moderna performance dos britânicos do The Devil, que tem acompanhado os headliners com certa regularidade, proporcionando aos fãs gaúchos uma noite simplesmente inesquecível. Não foi apenas o show do Therion, impecável, como veremos, mas uma experiência completa de comunidade, arte e paixão.
A Spleenful subiu ao palco próximo das 19h para mostrar um repertório complexo e dinâmico, com os dois pés fincados no lado sombrio e agressivo do metal underground.
No palco, o grupo é liderado pelo duo vocal Tiago Alano, que traz guturais secos e rasgados, e Bia Giovanela, de extensão ampla e definida, e que se mostrou bastante à vontade do início ao fim, a despeito da embaraçosa apatia e entra-e-sai por parte do público.
A verdade é que, até hoje, os headbangers ainda tem dúvidas sobre o código de conduta nos teatros, restringindo sua interação ao silêncio apreciativo e à formalidade dos aplausos.
Ainda assim, os vocalistas chamaram o público para a ação, e ao final foram brindados com uma plateia mais participativa. O som transita entre o gothic/doom e o metal de pegada moderna, marcado por grooves e algum virtuosismo, compondo a tradicional cena “dark” do RS.
Nos PAs, um pouco de excesso de caixa e bumbo e guitarras de crunch exagerado, dificultando a compreensão dos esmerados arranjos, mas no palco a banda era coesa e exigente com os detalhes. O destaque fica para o tecladista, Everton Soares, que abusou de diferentes timbres decisivos para a atmosfera barroca e inebriante do som. O repertório trouxe as principais canções do debut EP Bittersweet, além de “Noir” e “Winter Solstice Dream”, que recentemente ganhou um videoclipe.
A presença dos gringo do The Devil não foi suficiente para convencer todos os presentes a abandonarem seus cigarros, do lado de fora do teatro, em prol de uma experiência única no palco da AMRIGS. The Devil não é uma banda nada tradicional, e a estrutura do projeto flerta não apenas com a música metal, mas também com a arte performática e a instalação via projeção.
Assim, os presentes puderam entrar na viagem atmosférica, pós-apocalíptica e altamente reflexiva do quarteto anônimo, que não possui vocalista e sobe ao palco usando máscaras vienenses (a proximidade visual e sonora ao Ghost chega a incomodar, mas logo se vê que o projeto tem identidade própria).
O concerto propõe uma narrativa sobre a natureza do mal na nossa sociedade. Enquanto o nome da banda retoma o Diabo, figura que denota e retém toda a significação do mal na sociedade cristã, as imagens projetadas nos telões nos expunham tragédias canonizadas pela cultura, como bombardeios, campos de concentração, desastres naturais, ataques terroristas, além de civilizações pré-colombianas, supostas descobertas alienígenas e outros enigmas históricos.
Enquanto a banda mandava um instrumental reto, obscuro, melancólico e sem malabarismos, ressoava nos falantes uma narração de rádio/TV em inglês em conjunção com as imagens projetadas. Apesar da narração se perder na distância da segunda língua, fica claro que o conceito do projeto é questionar a existência do mal no próprio homem, e na função metafórica e escapista que o diabo possui em nossa sociedade para esconder o “mal” que nós mesmos produzimos para raça e planeta. O repertório trouxe canções do debut “sem título” da banda, com destaques para “Universe”, “Extintion level event”, e “World of Sorrow”.
Às 21h12, sobem ao palco Christian Vidal (guitarra), Nahle Palsson (baixo), Sami Karpinen (bateria), sob os gritos da plateia, agora completa, o sueco Christofer Johnsson, líder do Therion.
Soam as primeiras notas de “Theme of the Antichrist”, faixa que encerra o último lançamento, Beloved Antichrist. Sobem ao palco as 3 atuais vozes da banda, a energizada Linnéa Vikström, o carismático Thomas Vikström e a soprano impressionante Chiara Malvestiti, em um belíssimo figurino ao mesmo tempo angelical e profano, com direito a um protuberante par de chifres de alce. A música, com elementos clássicos do Therion, empolga muito, com execução idêntica à faixa do disco.
Sem tempo para respirar, a excelente “Blood of Kingu” foi a primeira das várias faixas do álbum Lemuria a figurar no set. Na sequência, uma das faixas mais rápidas de Sitra Ahra, fecha o primeiro bloco com guturais, agudos e blastbeats.
Vale ressaltar que a atual formação do Therion dispensa os coros que os consagraram mestres do metal sinfônico: as vozes dos 3 vocalistas, mais os tons graves fornecidos por Palsson, foram mais do que suficientes para preencher os quatro cantos da AMRIGS com harmonias vocais afinadíssimas.
A banda segue com mais duas faixas do último lançamento, a cadenciada “Bring Her Home”, quase dispensável não fosse pela demonstração de talento nato de Chiara Malvestiti, e a melódica “Night Reborn”, que traz um riff maravilhoso e um refrão exuberante.
Voltando no tempo, a banda traz “Nifelheim” e “Ginnungagap”, do clássico absoluto Secret of the Runes, cuja turnê trouxe a banda à Porto Alegre 17 anos atrás. Como previsto, essas músicas trouxeram o público para um estado de total euforia, a primeira revelando o belíssimo dueto entre as duas vocalistas, e a segunda sendo uma das mais esperadas da noite, com trabalho de guitarras espetacular.
O grupo aproveita a excelente aceitação e emenda “Typhon”, num primeiro momento irreconhecível, mas logo elevada à uma das melhores performances da noite, com os impressionantes timbres da soprano em contraste com a performance incendiária de Linnéa, que assumiu os guturais, jogou-se no chão e conquistou de vez o coração dos fãs.
“Temple of Jerusalem”, uma das faixas mais interessantes de Beloved Antichrist, mostra que o Therion, à parte de toda a grandiosidade dos vocais e arranjos, continua sendo sobretudo uma banda de grandes riffs. A seguir, a belíssima introdução de “Arrow From the Sun” manteve os presentes em estado de alerta para sua grande explosão, momento em que finalmente levantaram de suas cadeiras, passando o resto do concerto de pé.
Para a segunda metade do show, a excepcional “Wine of Aluqah”, uma das mais pesadas do clássico Vovin, com um refrão que se mostra ainda mais poderoso ao vivo, contrastando com a profundidade da balada “Lemuria”, apreciada sob o olhar catatônico e apaixonado dos presentes, e cantada por uma Chiara de joelhos no centro do palco.
Para o próximo ato, a banda vai ainda mais longe na linha do tempo para buscar o clássico “Cults of the Shadow”, do Theli, álbum importante na transição do Therion death metal do início para o tipo de trabalho operático que apresenta hoje. A faixa empolgou pela importância, já que para o fã os velhos clássicos tem um gostinho especial.
Em “The Khlysti Evangelist”, única faixa do Sirius B (lançado simultaneamente com Lemuria em 2004) trouxe uma excelente interpretação dos vocais rasgados e melódicos no refrão por parte de Thomas, além da “não exatamente comovente” representação de um beijo demoníaco entre ele e Linnéa.
A última canção do disco promovido pela tour é recebida pelo público novamente sentado, talvez por não ter ainda assimilado a totalidade de faixas do disco triplo. Finalmente tocam uma faixa única do inigualável Deggial, “The Invincible”, a qual – muito bem escolhida! – novamente colocou o público de pé com um ar de satisfação até então pouco observado. Parecia que, agora sim, o repertório havia feito jus aos grandes momentos de sua carreira.
Para o final do longo setlist, sem contar o encore, o grupo reservou lugar para duas ótimas faixas do disco The Gothic Stone, “Der Mitternachtslöwe” e “Son of the Staves of Time”, cuja excepcional melodia levou a banda para fora do palco ao som de infinitos aplausos. O fim se anunciava.
Para o retorno, duas faixas escolhidas a dedo. “The Rise of Sodom and Gomorrah” foi cantada em uníssono pelos presentes, sempre atiçados pela dinâmica dos 3 vocalistas. Somente neste ponto, com o chamado dos fãs, que gritavam “Therion! Therion!”, Thomas aponta para Christopher como que passando-lhe a voz. Christopher agradece a presença dos presentes, rememora a última passagem da banda por Porto Alegre, e dispara a pergunta: “quem estava aqui 17 anos atrás?” Apenas meia dúzia gritou que estava, o público majoritariamente formado por “jovens adultos”. “Estamos envelhecendo juntos”, concluiu o guitarrista para o pequeno grupo.
No fim, é o próprio Christopher que convoca a presença dos fãs para o último clássico da noite, “To Mega Therion”, terminada em clima de festa e com muito peso. A palavra do criador selou o fim de sua obra, e o Christopher Jonhsson, que antes balançava as longas melenas loiras enquanto cantava em gutural, hoje tem uma presença discreta mas essencial, apreciando do palco a qualidade e o prestígio de sua própria obra interpretada por um novíssimo line-up.
É fato que o Therion, com quase 30 anos de vida e com apenas um integrante original, vem se alterando drasticamente de álbum a álbum, cada vez mais lírico, mais melódico e mais conceitual. Mas não há por que se desapontar: o set apresentado foi uma excelente chance para se viajar por todas as eras importantes da banda, inclusive a atual, e a noite, encerrada em clima de festival, foi uma bela oportunidade para fãs, produtores e artistas celebrarem a conexão e a paixão pela música pesada.
Fotos por: Alessandra Felizari Texto por: Rust Costa Machado