Era tarde da noite de quinta-feira, véspera do primeiro dia da primeira edição pós-pandêmica do Rock in Rio e da janela do nosso lar temporário no Rio de Janeiro, um modesto apartamento de segundo andar em Copacabana, a poucas quadras da praia, dava pra ouvir, e bem até demais, a vida acontecendo no boteco do outro lado da rua. Nas caixas de som, nem samba, nem funk, nem sertanejo e nem música pop em geral. Só rock and roll mesmo. Esse talvez seja um dos diferenciais do Rock in Rio como festival. A cidade parece se movimentar toda em torno do evento por alguns dias, da conversa do motorista do Uber à playlist do boteco, da comunicação visual pelas ruas à linha especial de ônibus ligando estações do metrô à Cidade do Rock, são milhares de pessoas envolvidas e impactadas direta e indiretamente com a produção do mega evento.
Pra não desperdiçar seu valioso tempo, caro leitor, aviso ainda em tempo que não vou preencher essas linhas com setlists ou elogios genéricos à como tudo foi incrível neste ou naquele show. Sequer vou falar de todas as bandas grandes que tocaram. Tenho certeza que esse tipo de texto você já leu por aí. Vou tentar por aqui modestamente apontar o que fisgou mais forte o meu olhar e coração nesse primeiro dia e o que talvez eu não tenha gostado tanto assim.
O primeiro dia, conhecido como o Dia do Metal, trouxe ao Parque Olímpico do Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca, casa do Rock in Rio, uma multidão vestida de preto, estes adoráveis inimigos do dito “bom gosto” usualmente reduzidos à vulgar alcunha de “metaleiros”. Me arrisco a dizer que o Dia do Metal, talvez venha a ser, de todos, o dia mais uniformizado, por assim dizer. Ao contrário do que essa uniformidade superficial pode indicar, no entanto, existe muita diversidade por baixo deste manto monocromático e esse foi um dos pontos fortes do primeiro dia na minha opinião.
Sim, é verdade que possivelmente a grande maioria das camisetas pretas carregasse estampas do Iron Maiden e o grupo lendário fosse a principal razão para grande parte do público estar ali mas havia no Dia do Metal muito mais entre o Palco Mundo e o Palco Sunset que supõe sua vã filosofia, leitor amigo. No palco principal, o Mundo, milhares de pessoas tiveram a oportunidade de assistir aos distintos senhores ingleses do Iron Maiden apresentar o heavy metal pelo qual são conhecidos e idolatrados desde 1975 em uma apresentação misturando elementos teatrais, com várias trocas de cenário e figurino e uma solenidade que parece que só quem está falando a sério de bestas infernais tem. Por outro lado, uma plateia bem menos numerosa mas igualmente empolgada viu subir mais cedo, à um dos palcos menores, o palco Favela, o lendário grupo do underground carioca, Gangrena Gasosa. Os senhores do dito “Saravá Metal” também são teatrais, também recheiam sua música com assuntos demoníacos, muito embora da forma mais irreverente possível, e também estão debaixo do abrangente guarda-chuva do “Dia do Metal” mas sua música é tão diferente da música dos cavalheiros ingleses como a cachaça é do vinho. E que fique bem claro aqui, ambos, cachaça e vinho, tem do bom e do ruim. Pontualmente, um dos sucessos da Gangrena Gasosa, chamado “Quem gosta de Iron Meiden também gosta de KLB”, traz a mensagem nada elogiosa à grande tribo dos camisas pretas de que “hoje em dia os metaleiros são uma puta playboyzada”.
Permita-me retroceder algumas horas no tempo agora, ainda dentro de temática geral da diversidade dentro do Dia do Metal, paciente leitor, e retornar ao momento em que os primeiros acordes de guitarra soaram no festival. O primeiro show do primeiro Rock in Rio pós-pandêmico da história foi protagonizado por homens negros e isso é importante. Black Pantera, trio mineiro de thrash metal e punk convidando Devotos, ícones pernambucanos do punk, no palco Sunset, o segundo em tamanho e relevância dentro da Cidade do Rock. Eu não esperava mas foi bem emocionante começar com aquela pedrada. Apesar da impressionante estrutura de todo o Festival, eu tinha entrado lá torcendo um pouco o nariz para o lado indústria da coisa toda. Se você gosta de rock, é provável que alguma parte de você queira questionar alguma coisa. Quando tudo está muito bonitinho, com cara de parque temático, cheio de logotipos de patrocinadores e gente prestativa e sorridente, você desconfia. O pontapé inicial dado pela Black Pantera me desarmou um pouco dessa desconfiança. Não que ela, a desconfiança, não seja pertinente e necessária. Ela ainda está lá, mas acho que o caminho pra navegar no meio dessas dúvidas é mais complexo e prometo refletir sobre isso nos textos sobre os dias 8 e 9. Mas voltando ao Black Pantera, eles simplesmente vieram e tomaram o seu lugar ali com propriedade, protesto, homenagem à Elza Soares e muito orgulho. Charles Gama flutuando soberbo com sua guitarra em cima da galera vai certamente virar uma das imagens ícone dessa edição, e eu estava ali, bem pertinho!
Em um assunto relacionado ainda por esse recorte da diversidade racial, foi bonito também ver no mesmo palco em que tocou o Black Pantera, já de noite, o Living Colour, banda estadunidense formada há quase 40 anos, também por homens negros, e que recebeu o monstro da guitarra Steve Vai pra fazer um pouco mais de mistura no seu som já bem conhecido pela fusão de funk, metal, hard rock e por aí vai. Todos ainda mandam muito bem nos seus instrumentos e Steve Vai pareceu se divertir bastante no grupo, mas Corey Glover em particular segue cantando muito. O show também não foi desprovido de seu momento político pois além de contar com cartaz chamando ao voto e à democracia, a performance foi dedicada à vereadora assassinada Marielle Franco.
Essa vocação para a indignação e o protesto, seja nas letras das músicas ou em manifestações à parte dentro do show, já foi muito identificada com o rock, ou ao menos com algumas de suas vertentes. Talvez hoje em dia isso não seja mais tão evidente e aquela minha pulga atrás da orelha de dois parágrafos atrás fica à espreita, esperando para desacreditar alguns dos protestos, mas sendo bem sincero, fiquei bem satisfeito de ver esse lado do rock bem presente em vários shows. Além do Black Pantera, Devotos e Living Colour, teve Gojira fazendo um pertinente protesto contra a destruição da Amazônia e dos povos indígenas, teve Ratos de Porão (e não Ratos “DO” Porão, como a produção colocou na porta do camarim da banda de mais de 40 anos de estrada) que felizmente só precisam estar fazendo música pra protestar e teve, claro, as muitas vezes em que grande parcela do público de vários dos shows entoou espontaneamente o já clássico coro de “Ei, Bolsonaro! Vai tomar no cu!”.
Agora, pontualmente, só pra reforçar o argumento “veja-como-o-Dia-do-Metal-foi-louco-e-diverso”, dentre muitos outros shows e atrações que não pude ver porque ainda não tenho o dom da onipresença, destaco um que pude, ainda que parcialmente, o do Sepultura tocando junto com a Orquestra Sinfônica Brasileira. Foi algo memorável, pesado e belo, intercalando alguns dos seus maiores sucessos com belas execuções de famosas composições de música clássica. O povo todo cantarolando junto a melodia daquele trecho mais famoso da nona sinfonia de Beethoven foi algo arrepiante. Infelizmente, e aqui vai minha primeira crítica ao festival, uma certa confusão na comunicação na sala de imprensa deixou o processo de distribuição de coletes para os fotógrafos meio conturbado e meu irmão e colega responsável pelas nossas fotos acabou, muito frustrantemente, ficando de fora da lista para fotografar esse belo show, logo, para imagens do Sepultura com a Orquestra, dê um Google.
Aproveitando que comecei a falar mal do festival, acho que cabe um outro pequeno apontamento. Falei bastante aqui de diversidade, principalmente racial e de subdivisões de estilo dentro do rock e do metal, mas não percebi no dia do metal uma presença significativa de mulheres nos palcos. Inadvertidamente fiz minha parte para desmerecer a única banda composta só por mulheres se apresentando no palco Supernova, a Crypta, pois não consegui chegar a tempo de assistir ao show delas. De qualquer forma, não sei se isso seria uma crítica ao Rock in Rio ou ao metal de forma geral. Só não queria que parecesse que eu não tinha notado a presença massiva de pessoas do sexo masculino em todos os palcos.
Última crítica de hoje: os telões laterais no Palco Mundo, o principal, são incrivelmente pequenos. A situação é essa: você está um tanto distante do palco e enxerga os músicos meio que como formiguinhas. Aí você olha pro telão e os vê como formigas maiores, só isso.
Agora pra terminar com uma nota positiva, tive o prazer de entrevistar brevemente após o show deles no palco Rock District, o povo da Sioux66, banda de hard rock paulistana que já tem mais de 10 anos de carreira mas que segue com uma empolgação de dar inveja e tocam com a mesma energia (muita, no caso) seja o show uma abertura para o Aerosmith, um bar do underground paulistano ou um dos palcos menores do Rock in Rio. Procure pela entrevista que ela vai aparecer por aqui.
Ufa, se você chegou até aqui, resiliente leitor, é chegada a hora de nos despedirmos. Dias 8 e 9 estaremos de volta ao Rock in Rio e na sequência volto aqui pra mais uma bateria de impressões, divagações, filosofia barata, rock de vários tipos e com sorte algum protesto.
Confira fotos exclusivas do nosso colaborador Rafael Beck do Dia do Metal: