Há coisa de duas semanas atrás, nosso incansável time de cobertura do Festival South by Southwest (e aqui leia-se eu e meu irmão Rafael) teve o privilégio de assistir à estreia mundial do primeiro documentário completamente autorizado sobre a vida e carreira da lenda do heavy metal, Ronnie James Dio, no Paramount Theatre, em Austin, Texas.
Dividindo os assentos da plateia com a gente, grandes admiradores e figuras importantes na vida do músico, como sua viúva e empresária, Wendy Dio, o companheiro de Black Sabbath e Heaven & Hell, Geezer Butler, o ex-vocalista da banda Skid Row e fã declarado, Sebastian Bach e o amigo e radialista Eddie Trunk. Além, é claro, dos diretores do documentário, Don Argott e Demian Fenton e de outros apaixonados por Dio e heavy metal em geral. Ah, o filme se chama Dio – Dreamers Never Die.
Primeira observação digna de nota: o Paramount Theatre, sala de cinema mais prestigiada e elegante de Austin, tinha bem menos assentos ocupados do que achei que teria, ou que um documentário sobre Dio merecia, ao ponto de dar para escolher entre várias opções de assentos, minutos antes do início do filme. Seja porque estreias de documentários geralmente não são tão badaladas quanto longas de ficção ou porque o público médio do SXSW tem mais sede de coisas novas do que de remanescer sobre o passado através de formatos narrativos tradicionais, o fato é que a estreia mundial do documentário contou com uma plateia modesta, ainda que cem por cento apaixonada pelo tema do filme. Só a título de comparação, alguns dias antes, a estreia do longa The Unbearable Weight of Massive Talent no qual Nicolas Cage interpreta uma versão ficcionalizada dele mesmo, deixou umas boas dezenas de pessoas de fora, inclusive este que vos escreve, depois que a sala atingiu a lotação máxima.
O filme sobre Dio conta com uma boa seleção de material de arquivo desde o início da carreira de Dio, ainda nos anos 50 até a batalha contra o câncer e sua morte, decorrente de um câncer de estômago, em 2010. Intercalando este material de arquivo, depoimentos de pessoas queridas do artista, como as personalidades que citei no parágrafo mais acima, e causos especialmente pitorescos, como o narrado pelo ator e músico Jack Black, com quem Dio colaborou no filme Tenacious D in The Pick of Destiny. Para completar o caldo, algumas dramatizações bem competentes de cenas descritas nos testemunhos mas para as quais não havia registros e claro, uma dose generosa da produção musical de Dio desempenhando magistralmente o papel de trilha sonora do documentário.
Mais do que um documentário daqueles burocráticos que vai contando a vida da pessoa ano a ano, Dio – Dreamers Never Die é um tributo pois Don Argott e Demian Fenton, além de cineastas também são músicos e fãs de heavy metal que cresceram e foram moldados pela música de caras como Dio. E é um tributo que se esforça em mostrar alguém para quem originalidade, autenticidade e perfeccionismo eram qualidades não negociáveis. Esse talvez seja um dos maiores méritos do filme: o de lembrar de um artista que não tomou caminhos fáceis. Ao contrário, foi resiliente e teve que recomeçar várias vezes para não comprometer sua arte nem um pouquinho, deixando um legado extremamente valioso não só por conta da sua voz poderosa ou técnica musical em si mas pela fortaleza das suas convicções.
Posso dizer que ter visto o documentário e ter sido impactado pela vida e carreira daquela figura mudou um pouco o modo como eu estava preparado para absorver alguns dos shows que iríamos acompanhar no SXSW. Não dá pra entrar em contato com o universo de comprometimento artístico e vontade inabalável de um cara como Dio e não torcer o nariz para artistas em começo de carreira que agem no palco e fora dele como se já tivessem um legado gigante a ser admirado por gerações e gerações porvir.
No dia seguinte à estreia do filme, um painel chamado Dreamers Never Die – The Enduring Power of Metal conduzido por Eddie Trunk e contando com a presença daquele mesmo célebre trio que também estava no Paramount Theatre no dia anterior, se valeu da estreia do filme sobre Dio para falar, claro, do filme e da trajetória do artista, mas também sobre a poder de resistência do heavy metal como estilo musical e de vida ao longo de mais de 50 anos de existência.
Dos três convidados, Wendy Dio veio ao Festival também para lançar a autobiografia, há muito aguardada, que Dio começara a escrever antes de sua morte, chamada Rainbow in the Dark, e que ela própria ajudou a finalizar com a ajuda do jornalista Mick Wall. Wendy falou no evento, não só como viúva de Ronnie James Dio mas também como mulher e pioneira no meio bastante masculino do heavy metal e especificamente na função de empresária neste meio, foi elogiada pelos colegas de painel pela sua trajetória e em especial pelo seu trabalho na Dio Cancer Fund, organização beneficente fundada após a morte do artista.
Wendy lembrou, com bom humor, que o fato de ser esposa, além de empresária de Dio, lhe garantia uma vantagem em relação ao empresário comum no que dizia respeito à conseguir que o artista fizesse coisas que talvez não quisesse realmente fazer, como dar um entrevista, por exemplo. Afinal, não dá pra simplesmente dizer não à sua esposa assim. Constatação confirmada entre risos por Geezer Butler, também empresariado pela esposa, Gloria.
E falando nessa outra lenda, Geezer Butler lembrou a curiosa história sobre a origem do termo heavy metal, inicialmente usado por membros da mídia pejorativamente para descrever o tipo de música que o Black Sabbath surgiu fazendo, como algo que lembrava o som de um monte de metal sendo amassado junto. “Ozzy, por exemplo, odeia o termo heavy metal”, disse Butler. E acrescentou: “Nós sempre nos vimos como uma banda de hard rock, porque estávamos continuando a partir do Cream e [Jimi] Hendrix e [Led] Zeppelin, então éramos o próximo passo mais pesado a partir deles”. Segundo ele, a primeira vez que ouviria o termo de uma forma positiva seria coisa de uns 10 anos depois, em um documentário da MTV sobre a história do rock que creditava já então a invenção do heavy metal ao Black Sabbath.
Perguntado por Eddie Trunk sobre a influência de sua música nas bandas que vieram depois com variações mais extremas de Heavy Metal e se acompanha alguma dessas bandas atualmente, Geezer Butler foi categórico: “Não. Prefiro ouvir um audiolivro”, ao que foi recebido com muitas risadas e aplausos, e, criticando a falta de originalidade destas bandas dos ditos estilos mais extremos de heavy metal, seguiu contando sobre um episódio recente quando viajava de carro e, por uma meia hora teve a sensação que ouvia a mesma música no rádio, sem conseguir distinguir uma música da outra.
Mas nem tudo é uma porcaria para Mr. Butler. Das bandas que, na sua opinião, fazem um rock mais pesado, com originalidade, suas favoritas são Mastodon e Rival Sons (que aliás foi justamente a banda que ficou responsável pela homenagem ao Sabbath ao vivo no Grammy de 2019). E quando perguntado sobre o vazio que bandas como o Black Sabbath e o Metallica, por exemplo, deixam quando param de tocar, Butler lembrou de nomes como Slipknot e Ghost e de como sempre haverão novos grupos que ocuparão esse espaço.
Sobre o nosso terceiro convidado, o que dizer? Apesar de ter sua própria base de fãs e atingido grande sucesso no início dos anos 90 à frente da Skid Row, a presença de Sebastian Bach no evento parecia ter muito mais a ver mesmo com sua devoção de fã à figura de Dio e ao metal de forma geral, do que com a sua carreira. E isso não foi de forma alguma uma coisa ruim, pelo contrário. Sebastian Bach foi responsável por algumas das melhores risadas do painel, como quando contou sobre a primeira vez em que, ainda criança, passando de carro com seu pai por baixo de uma ponte, viu as palavras Black Sabbath em uma pichação e ficou absolutamente aterrorizado. Ou então quando transformou em motivo de piada os ilegíveis logotipos das bandas de metal atuais, que pra ele mais parecem galhos de árvore. Quando Eddie Trunk introduziu Sebastian Bach no início do painel, um dos títulos que usou foi algo como: “um dos maiores fãs de metal” que ele conhecia, e acho que junto com o próprio Eddie e os diretores do documentário sobre Dio, Don Argott e Demian Fenton, isso pode muito bem ser verdade.
Acho que o que ficou dessa experiência da estreia do documentário sobre Dio e mais o painel com esses absolutos personagens do heavy metal foi uma sensação de que os metaleiros, metalheads, headbangers, ou do que quer que queiram chamar esse povo peculiar, são acima de tudo gente que ama essa música e toda a mística que vem com ela.
Tem um lado nerd/fanboy na galera? Mas é claro que sim, inclusive, nossa própria equipe intrépida de dois se prestou a tirar selfie com o Sebastian Bach na finaleira do evento, (e antes que alguém fale alguma coisa, o Geezer Butler saiu um pouquinho antes com a Wendy Dio e não deu tempo de chegar neles), mas vejo esse amor de fã como uma coisa positiva, um lance de comunidade, de grupo de gente que ama a mesma coisa, simples assim.
Por outro lado, é possível que as lendas vivas sobre quem estive escrevendo possam ter pontos cegos no que diz respeito à eterna questão: “antigo = bom, novo = ruim”? Muito provavelmente. Mas isso não importa. Não pra mim, ao menos. Como eu ia dizendo, além de um respeito por esse povo que ama e é dedicado ao universo do Metal, escolho ficar também com uma lição de autenticidade e perseverança que a história de Dio e alguns outros causos que ouvi ao longo do evento me deixaram.