Quando se pensa em rock n’ roll, existem muitas histórias fantasiosas sobre pactos com forças malignas para a conquista do sucesso. Em “Ladrão de Vidas”, a banda paulista independente Besouro da Lua traz uma reflexão mais realista: pior do que qualquer acordo com o demônio é o modo de trabalho incessante da sociedade capitalista.
A faixa faz parte do EP Idiocracia, projeto de estreia do grupo independente, e traz as ”experiências horripilantes” do cantor, instrumentista, compositor e produtor Santino no mercado de trabalho conservador, trazendo na sonoridade e atitude as referências do post-punk e hardcore.
Narrando todo o processo de adoecimento pela alta demanda de trabalho, que enxerga os trabalhadores como máquinas ao invés de seres humanos complexos, a faixa “Ladrão de Vidas” é uma crítica a esse sistema pelo depoimento em primeira pessoa da própria força opressora.
“Sua vida acabou, nosso pacto vai até o fim
Eu não aceito outra resposta além do sim
Seu suor vai me enriquecer e os restos são seus”
Logo na primeira estrofe, a música já coloca o mercado como um pacto vitalício no qual a classe trabalhadora não possui opções alternativas práticas e realistas, restando o pacto que enriquecerá apenas as classes mais abastadas enquanto os demais se iludem com a ideia de meritocracia.
“Escolheu trocar sua vida por um mausoléu
E o carro do ano já tá na garagem
E essa vai ser a vida que tanto sonhou
Só esqueci de te dizer, acabou”
Mesmo entre aqueles que conseguem ascender socialmente, as conquistas materiais ainda cobram todo o tempo da pessoa, sem possibilidade de viver de fato, já que essa pessoa “se vendeu totalmente para uma empresa, buscando somente o dinheiro e o ganho material, em troca de sua própria saúde mental e física”, como explica Santino ao Wikimetal. “De certa forma, é um pacto com uma entidade chamada Ladrão de Vidas: ‘em troca de sua alma, eu realizarei o que você quiser’”.
“Sua respiração mudou, mas deve ser imaginação
Cada mentira que você contar, é um zero mais na sua conta
A verdade é que ninguém vai lembrar de quem você é
Te falta coragem, pra admitir que sua existência é igual a nada
Eu prefiro ser do que ter
Eu sou o ladrão de vidas”
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Com a própria experiência de enfrentar a depressão após alguns anos trabalhando com o próprio “ladrão de vidas” – fossem bancos, indústrias ou multinacionais -, Santino cita sintomas dos diversos transtornos mentais causados pelo excesso de trabalho em condições de alto estresse e cobrança.
Em uma das empresas pelas quais passou antes de criar o Besouro da Lua, o artista soube por meio de uma enfermeira que, todos os dias, de uma a três funcionários apresentavam problemas cardíacos relacionados ao estresse da rotina. “O dinheiro faz todo mundo pirar, começam a mostrar a pior parte que existe em você”, observa.
Nesses ambientes, além da falta de humanidade ao lidar com os funcionários, existe também pouco espaço para a diversidade e expressão. “Eu vejo o início de uma conscientização [no mercado de trabalho] que visa o bem estar e a diversidade nos empregos, mas ainda há muita gente torcendo o nariz, pessoas extremamente conservadoras que julgam seu gênero, sua cor, seu cabelo, suas tatuagens, seu sotaque, suas roupas”, conta Santino. “Eu acredito que, apesar de toda a dificuldade e preconceito, nós precisamos ocupar cada vez mais esses espaços e preparar o terreno pra quem vier depois, a luta tá só no começo”.
Essa luta está alinhada também com a essência do rock enquanto estilo de vida de protesto: é preciso criar caminhos para mudar a mentalidade de que tudo vale por dinheiro e dar às pessoas a oportunidade de viver com qualidade. “Apenas faça o que você ama e cuide de você e das pessoas ao seu redor”, resume o músico.
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