Fotos por Alessandra Felizari
O fim de mês foi bruto para os gaúchos, com a chegada da incrivelmente esperada data que traria a primeira turnê da Crypta, o Krisiun com a coroa do death metal há umas boas décadas, o Nervochaos que pegou uma bela carona nessa viagem e, pra fechar Belphegor, uma banda icônica, veterana, muito séria e comprometida com uma massa sonora que os coloca como uma das bandas mais pesadas do blackened death metal. Tudo foi perfeito nesse casting tão feliz – o preço, os horários, as numerosas datas Brasil afora, e, principalmente, as bandas, que fizeram jus às credenciais que carregam e, guardadas proporções, se portaram como headliners.
O primeiro show deste 27 de maio foi o da Crypta, e o quarteto (agora sim) brasileiro vem com sangue nos olhos. O input que as integrantes trazem é inigualável e deveria ser notado por qualquer banda almejando fazer metal extremo hoje. Técnica e direta na voz no baixo, Fernanda Lira entrega ótima presença, olhares, caras e bocas. O palco, ornado com castiçais e velas, dá o tom – as mina são old school, e celebram a mística de um satanic-panic que forjou a reputação do death e black metal – ambos estilos experimentados em sua musicalidade (aliás, a tônica do festival). A banda vem com Jéssica di Falchi (guitarrista que vinha em sua própria cruzada pelo metal tocando Iron Maiden num tributo feminino aos britânicos, entre outros projetos que a fizeram despontar). A guria simplesmente destrói, tem carisma infinito e mostra a intimidade que tem com a guitarra elétrica. Ela vem para preencher a lacuna deixada pela holandesa Sonia Anubis, que desertou a Crypta antes das garotas caírem na estrada. A falta foi sentida, mas ao menos em Porto Alegre, Jéssica roubou a cena (e alguns corações também). Evidente que a guitarrista Tainá Bergamaschi mostrou o porquê de ter buscado sua posição ao lado das ex-Nervosa, de modo que os destaques do show eram as interações entre as duas guitarristas, que exibem atmosferas profundas, riffs inspirados e muita velocidade. A gaúcha Luana Dametto demonstrou serviço e ensaio, e mostra-se plenamente confortável enquanto revelação na baterística ultraviolenta – a seu modo – deste século.
A noite acaba ganhando especial importância por reunir, em casa, a gaúcha em tour com o lendário Krisiun, que também é formado por gaúchos do interior do estado. A banda executa temas de seu debut, e recebe ótimo feedback com a mais-rápida-do-álbum “Starvation”, com a plateia em coro mandando o presidente passear. As minas puxam a faixa “Dark Night of the Soul”, parecendo esfomeadas por mostrarem o que sabem fazer, e dando uma verdadeira aula de destreza e condicionamento. Fernanda agradece a casa admiravelmente cheia. O quarteto encerra o show com “From the Ashes”, seu primeiro single, trazendo belas curvas melódicas e metal de fã pra fã. O som que a Crypta entrega é palatável, não só por que é brutal e inteligente na medida certa, mas porque soa muito como uma banda clássica usando recursos atuais para soar perfeitamente bem (e estão certíssimas). Dessa forma, Fernanda, Luana e Tainá (e Jéssica!!!) estão plenamente inseridas no mercado em que participam, e devem ser tomadas como exemplo de “dar certo” às custas de trabalho, criatividade, visão e competência. As quatro deixaram o palco cedinho, e num clima de festa boa esbarramos com as garotas pelo bar, para cervejas, fotos e autógrafos enquanto o palco era preparado para o baile da próxima atração.
O também brasileiro Nervochaos sobe ao palco com o americano Brian Stone nos vocais. O quarteto divulga seu novo disco, All Colors of Darkness (2022). Brutalidade e velocidade avassaladora, a banda faz grooves cavalos e riffs de thrash explodirem nos PAs, eclodindo numa brutalidade quase indistinta, serenamente orientados por um projeto sonoro desestabilizador e caótico (como o nome sugere). Músicas longas se perdem na parede de som que toma o Bar Opinião. Orgulhosos de seu novo disco, Stone dispara: “Vocês não podem sair daqui sem ele”, em sotaque carregado. A banda entrega músicas de quase todas suas encarnações, e do último destaca-se “Dragged to Hell”, death metal cru e de poucos amigos, com incursões cadenciadas. Ainda que traga um show relativamente mais simples que as demais atrações, o Nervochaos deixa sua marca e satisfaz os velhos apreciadores de metal brasileiro enquanto arrebata novos fãs nesta longa gira ao lado de titãs do gênero.
“Buenas Noches Porto Alegre, Buenas Noches meu Rio Grande Do Sul querido!”, brada Alex Camargo subindo no palco tão à vontade que não me surpreenderia se estivesse usando alpargatas. No show do Krisiun, a casa de shows ganhou uma aura de churrascada entre amigos. É que o trio Kolesne-Camargo é muito – MUITO – gaudério, e fazia alguns anos que não tocavam na casa dos metaleiros gaúchos – o Bar Opinião – como o próprio Alex fez questão de lembrar. Eles tocaram cada som como se estivessem num ensaio na garagem de casa, só que com uma execução inigualável de uma fileira de clássicos modernos e arcaicos: “Kings of Killing”, “Ravager”, “Combustion Inferno”. O vocalista ainda se presta a uma rendição rara (e etílica) de “Vento Minuano”, do velho cancioneiro gaúcho, para o agrado dos ufanistas.
A banda ainda manda “Descending Abomination” e se declara honrada de tocar com Crypta, tendo as integrantes elogiadas pelo frontman – um chancelamento digno de nota. Saúdam ainda os velhos parceiros do Nervochaos e nos lembram que o Belphegor, banda referência na trajetória dos 3 guris ijuienses endemoniados, ainda estão por vir.
A banda ainda entrega graves encorpados e vocais incorporados para “Scourged of the Enthroned“, mostrando que o Krisiun atual é apenas um reflexo de uma trajetória longa, um aprendizado ininterrupto e as condições perfeitas para um power trio que atravessa incólume 3 décadas de existência fazendo que ama em família. A banda ainda solta um “Ace Of Spades” (Motorhead), acentuando o clima festivo da noite, que entre idas e vindas na ampla área externa do Bar Opinião, permitia grande circulação de pessoas, encontros entre amigos, registros de momentos e expectativas pelo gran finale. Finalmente, “Black Force Domain” encerra o grande momento que o Krisiun teve com seus irmãos do Rio Grande.
Mais cerveja, mais espera, banheiro, filas, selfies – o Bar Opinião estava visivelmente animado com os reencontros, com as turnês, com as novidades na agenda cultural da cidade (que, para todos os gostos, está mais vasta do que nunca). O Belphegor sem dúvida encerraria uma grande noite, mas ainda assim era possível ver alguns desertores, satisfeitos com o que haviam visto até ali. Nesse ângulo, ver o Belphegor era realmente um luxo opcional. Mas sob o ângulo dos fãs dos austríacos, o melhor estava por vir.
Para fechar a noite, o nível realmente sobe com o Belphegor no palco. Apesar das bandas anteriores terem muito a mostrar, a forma como o quarteto austríaco se impõe os diferencia substancialmente das outras bandas. A horda eleva o volume da porradaria e traz um repertório incansável, dando contornos litúrgicos de missa negra tipicamente black metal ao um hinário devastador e bestial. No repertório, uma lista de sons aclamados pelos fãs, que mostraram-se a par dos arranjos de “Hell’s Embassador”, “Stigma Diabolicum”, “Lucifer Incestus” e outros temas dedicados à velha arte de soar extremo, maléfico e mal intencionado. Enquanto se preparam para o lançamento do novo disco The Devils (2022), que deve sair dia 24 deste mês de junho, a banda também apresenta “Virtus Asinaria”, single inédito que rendeu um videoclipe.
Helmuth Lehner, o único membro original do Belphegor (est. 1991), carrega com vigor a bandeira do death/black metal noventista, dando a suas apresentações grandes ares de teatralidade e a visceralidade do artista que toca por um propósito que é maior que a si próprio. Acompanhado do baixista e parceiro de longa data Serpenth, os dois músicos mantém uma atmosfera que remonta um longínquo passado onde esse tipo de som era frequentemente considerado ameaçador aos ouvidos e psicológico de seus frequentadores.
A banda é saudada por um público dedicado, que mostrou que conhece as cadências e a tirania de seu repertório. Os gaúchos mostraram que tem o Belphegor, o death e o black metal em altíssima conta, e quem ficou, certamente viu o que queria ver. Helmuth saúda seus fãs gaúchos com apreço pelas demonstrações de carinho por sua extensa obra. É hora de dar tchau.
Após mais de dois anos de expectativas vazias, turnês canceladas e falta de alento, o mercado musical está sedento. Frente a incerteza do futuro, o povo da música ao vivo, profissionais e entusiastas, estão aproveitando a boa onda. Esperamos que seja possível seguir vendo shows em segurança, e também que esta longa abstinência continuem motivando lineups e reuniões do porte que tivemos nesta noite.