“O que seria do mundo sem a cultura preta?” É o que questiona Black Pantera na faixa-título de seu novo álbum de estúdio, Perpétuo, lançado na última sexta-feira (24).
Formada por Charles Gama (guitarra e vocal), Chaene da Gama (baixo e vocal) e Rodrigo “Pancho” Augusto (bateria), a banda declaradamente antirracista e decolonial traz como tema central de seu novo disco a ancestralidade preta e a espiritualidade. Ao longo das músicas, o grupo olha para o passado ainda muito recente e doloroso dos quatro séculos de escravidão, mas também pensa no futuro e na longevidade da cultura preta, para a qual eles, enquanto banda, também contribuem a cada novo projeto.
Expandindo as temáticas exploradas em álbuns anteriores, Perpétuo presta homenagem, especificamente, à identidade afro-latina, enfatizando temas como a importância da descolonização, não só em sociedade, mas também em relação à cultura sul-americana, que por vezes é subestimada até mesmo entre os próprios países latinos. Para isso, o Black Pantera decidiu se aventurar sonoramente com o produtor Rafael Ramos e incrementar ao som pesado do hardcore ritmos brasileiros e afro-latinos, com uma variedade de instrumentos de percussão comandados pelo baterista Rodrigo Augusto (ou “Pancho”). As novas experimentações estão espalhadas por todo o disco, mas destacam-se as faixas “Candeia” e “Mete Marcha”, trazendo influências até do maracatu.
“Dentro do nosso som cabem todas essas coisas”, afirma Charles em entrevista ao Wikimetal. “Nesses 10 anos, nós conseguimos nos moldar dessa forma. Não temos limites sonoros.” Rodrigo, que começou a vida musical tocando percussão e samba, concorda com a necessidade de expandir os horizontes dentro da música pesada: “A gente não tem medo nenhum de experimentar. O nosso lance é fazer música. E nosso lance maior hoje é mais sobre o que a gente tem a dizer. Acho que isso é muito mais importante”, enfatiza.
Perpétuo chega na esteira do aclamado álbum Ascensão (2022), que colocou o Black Pantera no circuito de grandes festivais sediados no Brasil, como Rock In Rio, Primavera Sound, Knotfest, Afropunk e Lollapalooza. Trazendo músicas como “Fogo Nos Racistas” e “Padrão É O Caralho”, a banda ficou conhecida especialmente por seu discurso e postura revolucionários, e criou para sua comunidade de fãs (e para si) verdadeiros gritos de guerra, não só contra o racismo, mas também contra a homofobia, o machismo, e qualquer outro tipo de opressão que aflige as minorias no Brasil, como eles mesmos fazem questão de enfatizar.
Na faixa de abertura, “Provérbios”, o trio fala da revolução que querem ver e fazer na nossa sociedade, não como um trabalho individual, mas sim do coletivo. Chegar ao palco desses grandes festivais “falando sobre o que a gente fala, sem retroceder, sem dar um passo para trás, sem ficar em cima do muro”, como pontua Chaene da Gama, já é um ato revolucionário e faz parte do “trabalho de formiguinha” do Black Pantera de construir uma comunidade e um espaço onde as pessoas pretas se sintam representadas.
“[Antes da banda começar], a gente ficava caçando pessoas pretas no rock ‘n’ roll, nas bandas, no rolê”, conta Chaene. “Teve rolê em que só tinha eu e o Charles de pessoas pretas. Com o Black Pantera, a gente vê que muitas pessoas pretas estão voltando a ir em show de rock porque se sentem representadas. A gente vê que é muito importante para algumas pessoas, que elas se emocionam, se identificam. As pessoas querem estar juntas, querem estar perto, querem falar, comentar, querem cantar a plenos pulmões.”
“E a gente tem visto nos shows cada vez mais diversidade”, complementa Rodrigo. “As pessoas se sentem muito confortáveis para estar no nosso show. Você vê pessoas trans levando bandeiras, as minas colando no mosh, extravasando sem medo, porque o pessoal sabe que tem que respeitar e a gente faz muita questão de frisar isso. Isso é muito bonito: não ver só os metaleiros, os headbangers. Acho que a gente está cada vez mais distante disso. Isso, por um lado, é bom, porque esse metaleiro ficou meio antiquado em um certo ponto de pensamento. Acho que essa é a revolução: a revolução do pensamento. Pra gente, não faz sentido ser uma banda autoral e não falar sobre coisas do nosso tempo.”
A banda admite que deve muito do letramento racial que eles têm hoje em dia à ajuda dos fãs, que estiveram sempre abrindo discussões, indicando leituras e ajudando a fortalecer o conhecimento que hoje eles têm depois de muitos anos de estudo. Mesmo depois de três álbuns inegavelmente políticos, Perpétuo aborda temas de maneira muito mais pontual e sofisticada, explorando narrativas que vão desde a travessia dos povos africanos para serem escravizados no Brasil até a importância da espiritualidade e das religiões de matriz africana e afro-latinas. “Acho que a gente sempre quis dizer o que estamos dizendo [nesse álbum], mas faltava letramento racial. Os fãs da banda trouxeram muito disso pra gente”, conta Rodrigo.
Um dos grandes momentos de destaque é a sensível e visceral “Tradução”; um desabafo emocionante escrito por Chaene da Gama para sua mãe, mas que acaba por retratar a realidade de diversas mães pretas e periféricas no Brasil que batalham e trabalham a vida inteira, mesmo já em idade avançada, para cuidar da casa e da família. A faixa escrita com voz e violão e gravada no baixo causou estranhamento em alguns ouvintes que acusaram a banda de estar fazendo baladas. Chaene rebate: “Não estou fazendo balada. Estou falando da minha mãe, de racismo estrutural e como ele age na nossa vida.” Ao que Rodrigo complementa: “Pra mim é a letra mais pesada do disco porque a gente não queria viver isso. Todo mundo aqui queria que a mãe estivesse viajando, no luxo. Hoje, com a banda, a gente ainda não consegue dar isso pras nossas mães.”
Completando 10 anos em 2024, o Black Pantera revela que só recentemente, com o sucesso do disco Ascensão (2022) e a aparição no Rock In Rio, eles conseguiram ver retorno financeiro o suficiente para se sustentar e se manter apenas do dinheiro gerado pela banda. Hoje eles têm o suficiente para cuidar da família e manter toda a equipe de pessoas trabalhando com eles, mas não o bastante para realizar grandes sonhos, como dar uma vida de maior conforto para as mães. “É a causa e efeito de ser uma banda preta declaradamente antirracista”, pontua Chaene.
Apesar disso, Charles Gama, que foi quem teve a ideia de formar o Black Pantera 10 anos atrás porque não se sentia representado pelo rock da época, olha para a trajetória do trio com muito orgulho e satisfação. “A gente é super realizado”, afirma. “Apesar de ainda não sermos realizados financeiramente, a gente consegue se manter, sempre tem comida em casa, o que é muito bom. Os orixás estão sempre nos abençoando. É muito prazeroso saber que há 10 anos esse projeto parecia impossível. Uma banda preta no Brasil tocando rock ‘n’ roll? A gente acha que não dá pra fazer isso, mas dá. Devotos tá fazendo isso há 30 anos já. Hoje em dia nós sabemos que somos a nova geração disso e daqui a pouco vai surgir a nova geração da gente também e isso vira um fluxo constante.”
Essa perpetuação da mensagem passada pelo Black Pantera e da comunidade que eles ajudam a criar e fortalecer a cada dia é o real significado por trás do nome do novo disco. A banda que começou há uma década com o sonho de ser a representação que raramente encontraram, hoje se emociona ao ver seu trabalho dando frutos e comovendo as mais diversas gerações.
“É muito emocionante porque a gente passa por situações extremamente calorosas de carinho e de afeto muito grande, muito grande mesmo, de pessoas de idade, sabe? De ver um senhorzinho preto agarrado na grade, tomando soco, mas ficando lá para poder ver o show e depois vir falar com você emocionado e dizer o quanto foi importante pra ele ver a gente”, recorda Charles. “É uma criança pequena de seis, sete anos com a camiseta da banda e já olhando aquilo com muito carinho, vendo a gente assim como rockstar da vida dele, saca? Isso é muito grande. É mudar todo um embranquecimento da música rock ‘n’ roll e trazer para essa galera preta o orgulho dentro disso: que o rock ‘n’ roll foi criado pelos pretos. E também tomar isso de volta de uma forma justa. A gente não está pegando nada de ninguém, não estamos roubando nada de ninguém. Temos o nosso espaço dentro disso.”
E eles não têm a mínima intenção de parar por aqui. Todos os integrantes são firmes em dizer que querem continuar com o Black Pantera por décadas e que o objetivo é continuar crescendo e ocupando cada vez mais espaços com sua música e suas mensagens de luta e revolução. “A gente ainda tem muito cartucho pra queimar, tem muito disco pra fazer”, garante Rodrigo. “A gente quer o mainstream, a gente quer ficar grandão”.