Texto por Ana Clara Martins
As portas da casa de shows Audio, localizada em São Paulo, abriram pontualmente às 18h. Poucos minutos depois, uma tempestade torrencial invadiu a cidade. Parecia que o tempo sabia que algo histórico estava prestes a acontecer na última terça-feira, 5. No entanto, aqueles trovões não chegaram nem perto do maior estrondo daquela noite, comandado pelas mulheres do Bikini Kill que, após 33 anos de banda, se apresentaram pela primeira vez em solo brasileiro.
Pioneiras do movimento punk underground Riot Grrrl, que surgiu nos anos 90 e buscava trazer o protagonismo às mulheres em meio a uma cena que era – e hoje em dia não é muito diferente – dominada por homens cis brancos heterossexuais, Bikini Kill arrastou uma multidão não só de mulheres que estavam ansiosas para vê-las e que as inspiraram durante toda a adolescência, mas também de meninas mais novas. Perto da grade, era notável a presença esmagadora dessas mulheres e pessoas LGBTQIA+.
A banda responsável por abrir a noite foi Florcadáver, composta por Amanda Buttler (baixo e voz), Céu (guitarra e voz) e Theo Charbel (bateria e voz). O trio de São Paulo/Belo Horizonte fez com que um som atmosférico tomasse conta do local, com diversos momentos puxados para o noise, protagonizados pelos pedais de guitarra. Apesar de destoar do punk rock, o público apreciou o show, dançando bem de leve, acalmando os corações que ansiavam pela voz estridente de Kathleen Hanna.
Seguindo a noite, foi a vez da Bertha Lutz mostrar o seu punk/hardcore dykepride, antiracista, antigordofobia e anti(cis)tema, diretamente de Belo Horizonte, Minas Gerais. A banda, que não tocava ao vivo desde 2019, conta com Bah Lutz (vocal), Rafa Araújo (baixo/vocal), Gabi Araújo (guitarra), Julie Moura (Guitarra) e Fernanda Kah (bateria).
As primeiras rodas punks foram encabeçadas nesse show, instaurando uma energia visceral. A plateia acompanhou aos gritos os vocais de Bah em diversos momentos, como nas músicas “Não Passarão” e “Preta Gorda Sapatão”. Além disso, a apresentação contou com um momento surpreendente: Bah chamou para subir ao palco Ieri Luna, ex-vocalista da banda Bulimia que, apesar de ter durado apenas 3 anos, se consolidou como uma das principais referências do cenário riot grrrl brasileiro.
A sequência de shows de abertura foi encerrada com a performance de The Biggs, de Sorocaba, formada por Flávia Biggs (guitarra e vocal), Mayra Biggs (baixo e vocal) e Brown Biggs (bateria). Na estrada há mais de 25 anos, o trio entregou uma apresentação que fez o público bater a cabeça, dançar e sorrir, com destaque para os solos de guitarra recheados de personalidade. Ao longo do show, Flávia comentou que a técnica de som do Bikini Kill a reconheceu no camarim, pois participaram juntas do Girls Rock Camp de Portland, em 2005. Hoje em dia, a artista coordena o Girls Rock Camp Brasil e, com os olhos marejados, destacou a importância daquela noite, visto que parte da bilheteria será destinada para o projeto.
Entre as apresentações, as DJs CamillaJaded & Erika não só tocaram clássicos do riot grrrl, como também músicas protagonizadas por mulheres, transitando entre Sonic Youth, Blondie, X-Ray Spex e até mesmo Marina Lima. Quando faltavam apenas 10 minutos para a entrada da banda, as DJs fizeram a canção “Deceptacon”, da banda Le Tigre – outro projeto de Kathleen Hanna, vocalista do Bikini Kill -, ecoar na Audio, fazendo dezenas de mulheres cantarem a letra decorada por completo. Era um recado: a entrada de Bikini Kill estava logo ali.
A música parou de tocar e os gritos tomaram conta da casa, até que Tobi Vail (bateria), Kathi Wilcox (baixo) e Erica Dawn Lyle (guitarra) sobem no palco. Pouco depois, Kathleen Hanna faz a sua entrada triunfal, arrancando vários “Kathleen, eu te amo!”, enquanto a banda começava os trabalhos ao som de “New Radio”.
O público se espremia em meio às rodas punks e vibrava em cada palavra cantada. Mais de 20 músicas foram performadas, entre elas “Carnival”, “Feels Blind” e “I Like Fucking”. Toda a banda revezava nos instrumentos: em alguns momentos Tobi saía da bateria, indo para os vocais, enquanto Kathi assumia a bateria e Kathleen ia para o baixo. Outras vezes Tobi ia para o baixo. Somente Erica permanecia na clássica guitarra Rickenbacker o tempo inteiro.
“Girls to the front, girls to the front, girls to the front!” (Garotas à frente, garotas à frente, garotas à frente!). A plateia vibrava com a frase que ficou marcada durante os shows do movimento riot grrrl, incentivando mais mulheres a chegarem na frente do palco. Entretanto, a banda destacou a importância de enxergarmos o movimento de forma interseccional, dando espaço para todos os corpos dissidentes, englobando pessoas LGBTQIA+ e sublinhando que não é possível identificar o gênero de uma pessoa apenas olhando para ela.
Um dos principais veículos de divulgação da cena Riot Grrrl continuam sendo as fanzines. Foi possível observar isso quando uma menina entrega sua zine para Kathleen, que pega e faz a divulgação. Logo após, uma chuva de zines toma conta do palco.
Depois de apresentar “Suck My Left One”, música pesada e cheia de energia, a banda se despede e sai do palco. Em poucos segundos, retornam para o bis, que foi marcado pelos grandes sucessos “Double Dare Ya” e “Rebel Girl” (que recentemente foi considerada uma das 500 melhores músicas da história pela Rolling Stones).
A sensação daquela noite foi de acolhimento. Apesar de não estarmos totalmente seguras em ambiente algum, foi o primeiro show em que senti que a maioria das pessoas podiam expressar uma indignação por frequentar espaços majoritariamente dominados por homens brancos cis héteros. Era como se todos pudessem gritar sem sentir medo.
Naquela noite, Bikini Kill mostrou que segue como referência para inúmeras mulheres, meninas e pessoas queer, carregando o sentimento de que é possível ser radical, ousada ou somente fazer o que sempre quis e nunca teve coragem. No dia 14, o grupo marcará a sua presença novamente em uma apresentação extra na Audio. Imperdível.