Show do Angra em Porto Alegre, a gente já sabe: casa lotada, fãs inflamados, resgates do passado. Em 30 anos, a banda viveu o suficiente para ter muita história para contar, e nessa jornada de altos e baixos, há muito o que comemorar. A festa do momento é para o aniversário (atrasado) de 20 anos do álbum Rebirth (2001), que alçou a banda a um patamar ainda mais alto, quando isso parecia impossível. Em meio à debandada de 3 dos 5 integrantes originais, o renascimento veio alto e claro com um álbum que se tornou um clássico absoluto nas prateleiras de gerações de fãs de metal técnico, melódico e brasileiro.
Após segunda deserção em massa entre os anos 2010-2027, Rafael Bittencourt (guitarra) conta atualmente com Filipe Andreoli (leal baixista desde a estreia no tal Rebirth da banda, em todos os sentidos), além de Marcelo Barbosa (que substitui o guitar-hero brasileiro Kiko Loureiro – hoje no Megadeth – e cumpre a tarefa à vontade com o instrumento) e Bruno Valverde, que integrou a banda como um jovem ponto de interrogação em relação ao legado baterístico do Angra. No microfone, o vocalista é Fabio Lione (ex-Rhapsody of Fire), que integra a banda há alguns anos e com alto e claro sotaque italiano, sempre entregou muito bem.
Como se pode perceber, o Angra foi um supergrupo de grandes músicos em todas as suas encarnações, e está introjetado na cultura musical do Brasil como música de nicho, erudita, metal e folclórica. Substituir figuras como Andre Matos, Kiko Loureiro e Aquiles Priester exige tocar tão bem quanto os caras antigos e ainda trazer sua cara, o que, convenhamos, é pedir bastante.
O Rebirth é um álbum muito diverso, traz baladas operísticas, power metal sangue novo, levadas abrasileiradas, épicos em 3 partes e um Edu Falaschi quase adolescente, sem controle do poder que tinha sobre massas de jovens pelo Brasil inteiro, e com a responsabilidade de substituir Andre Matos. Com grande apreço pelo álbum, o RS se mexeu e lotou a José do Patrocínio de ônibus de excursão. O Opinião enquanto bar estava impraticável – de tão lotado ouvia-se alguma truculência aqui e ali, e relatos de desconforto. Como casa de show, segue sendo a casa dos metaleiros (também cultural), onde a banda, em suas 3 ou 4 formações, encontra a cidade desde o Fireworks.
Naquele 25 de junho, o show foi antecedido pelo Mortticia, banda local que vem apresentando suas composições na internet desde antes da pandemia. Era notável a satisfação dos garotos, estampada no sorriso do vocalista Lucas Zawaki. O quinteto traz um metal tradicional que explora estruturas próprias. Do seu set, se destaca “Ocean of Change”, que finalizou a passagem da banda.
Em seguida, era a vez do Rage In My Eyes. A banda traz seu metal gaudério para compor uma noite de power metal e sulismo. Com o palco adornado de imagens de seu mais recente trabalho Spiral, a banda mostrou um set de respeito, com músicas deste EP e também de seu impressionante debut, Ice Cell. Os destaques ficam para Jonathas Pozo, um dos melhores vocalistas da atualidade no cenário melódico, e também do gaiteiro Matheus Kleber, que ostentou grandes duetos com Magnus Wichmann (guitarra, ex-Scelerata). A banda certamente agradou com temas como “Death Sleepers”, “Winter Dream” e os impressionantes agudos de “Spiral Seasons”, além da balada “Spark of Hope”, com seus encantadores versos em português entoados pelo público. Tanta velocidade, personalidade e técnica deixaram uma ótima impressão para os músicos gaúchos, que participaram também das datas do Angra em Florianópolis e Curitiba.
Finalmente, era a hora deles. O Angra veio soberbo, e acompanhado do tecladista Dio Lima e do percussionista Guga Machado, abriu com (a tradicional) “Nothing To Say” e, na sequência, a música da Sandy (“Black Widow’s Web”), jeito exótico de promover sua nova identidade, com tanta música boa no catálogo do Omni, seu mais recente disco. A noite estava animada. De ingressos esgotados semanas antes, finalmente deram o que o público queria: o Rebirth na íntegra.
Vou poupá-los de detalhes, pois conhecemos o disco e, exceto pelo vocal, ele foi executado fielmente. O Marcelo Barbosa toca “Nova Era” (o maior desafio do ano 2000) com uma mão nas costas, o Andreoli claramente está vivendo um teto todo seu, a Bruno Valverde fica a tarefa de performar as icônicas viradas, levadas, como “Acid Rain”, bumbos maneiros como “Milleniun Sun”, e tudo o mais. Rafael Bittencourt ficou pelo palco, um pouco perdido entre o papel de host da noite e “mero” guitarrista da banda. Fabio Lione, apesar de 2 discos com o grupo, fez a comemoração parecer um tributo. É um pouco como ouvir o Blaze Bailey cantando os clássicos do Iron Maiden – pode ser muito legal, mas uma certa ausência é sentida.
Mas não quero decretar o fim do Angra: a banda entrega o que promete, “Unholy Wars” por exemplo é um petardo e mostra uma banda poderosa, com explosão, grandes esforços musicais e, para a segunda metade do disco, a apresentação fica mais interessante. “Rebirth” vem cheia de pompa, e é cantada em uníssono. É impossível não se emocionar com “Judgement Day” e “Running Alone” que de fato dão um fôlego enorme pra esse disco tão marcante, e no final Fabio Lione manda um vocal de ópera para a “Visions Prelude”, por um momento lembrando as pessoas de que não é um tributo – a banda é essa agora, e o pequeno input de Lione serviu para aquecer ainda mais a noite. Aí que Bittencourt pega o microfone, apresenta a banda e agradece ao carinho. Põe carinho, eu já disse o quão lotado estava?
Depois disso, o Angra seguiu no clima festinha e apresentou uma faixa de cada item de sua discografia. Trazer um berimbau ao palco do Opinião, na mão de Guga Machado, foi bem legal da parte do Angra, já que é o som do instrumento que antecede o grande hit de Aurora Consurgens, “Course of Nature”. A banda emendou uma ótima execução de “Metal Icarus”. A energia cai um pouco em “Shadow Hunter”, que logo traz “Bleeding Heart” e “Rage of the Waters”, do excelente (mas renegado) Aqua. Sugada, a plateia se distrai com uma longa introdução de baixo e acaba entrando em “Upper Levels”. A banda deixa o palco com o público extenuado e sem espaço pra se mexer.
O quinteto (e convidados) ainda voltariam para “Carry On”, mas aparentemente foi o Fabio Lione quem se distraiu. A banda seguiu intacta ao desalentado esforço do vocalista de cantar a canção, na qual geralmente ele destrói, mas que por uma razão técnica, nessa noite ficou como uma hilária memória que certamente permanecerá no bem-humorado coração dos fãs. Aparentemente sem retorno ou referência da som, Lione jogava ao microfone versos da música em partes erradas, ponte no refrão, refrão nos solos, uma loucurada. O público levou na esportiva e assistiu a banda levando a canção intacta até o final e sem sequer transparecer sinais de transtorno ou mesmo incômodo. À parte do evidente aspecto cômico de um italiano com sotaque super acentuado tentado cantar as agudíssimas frases que abrem o Angels Cry, Rafael Bittencourt enfim teve um momento de paz com os seus fãs, que riram e choraram com o infortúnio do vocal, e juntos ignoraram o fiasco do italiano e cantaram os versos da canção, enquanto acreditavam entoar os versos do maior clássico do metal brasileiro até hoje – e convenhamos, talvez o seja.
O Angra encerra sua apresentação com a sensação de dever cumprido, a despeito dos inconvenientes – a casa desconfortavelmente cheia, o esgotamento do público, o gran finale atribulado. O Angra aproveita a gira para surfar o legado de um disco histórico, o qual fidelizou umas duas geração, mas deve seguir na batalha para emplacar sua nova cara, com ou sem convidados, conceitos mirabolantes ou estratégias engajamento nas redes – mas com música, como sempre fez. Em breve, estarão produzindo com Dennis Ward (produtor do Rebirth), quem sabe criando o momento ideal para finalmente encerrar o período de festas, reatar com a velha escola germânica de heavy metal melódico e dar forma a riffs e hits com o DNA da atual formação.
Veja abaixo uma galeria de fotos feita com registros da nossa colaboradora Alessandra Felizari.